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Experimentação animal por cá: Em que pé estamos e o que falta trilhar?

Em Portugal, dezenas de milhares de animais são testados todos os anos para fins científicos. Da legislação às críticas, o Notícias ao Minuto foi compreender como é tratada esta realidade e quais são os principais desafios no país, no Dia Mundial do Animal de Laboratório.

Experimentação animal por cá: Em que pé estamos e o que falta trilhar?
Notícias ao Minuto

09:03 - 24/04/21 por Mafalda Tello Silva

País Experimentação animal

Na comunidade científica, a experimentação animal é amplamente considerada um 'mal necessário' para a fruição dos benefícios da medicina moderna. Em oposição, a maioria dos ativistas da causa animal garante que os laboratórios não se abrem a novos métodos alternativos e defende que o uso de animais em investigações promove conclusões científicas erradas, devido às diferenças incontornáveis entre os organismos.

Em Portugal, esta discussão também se perpetua. Mas, a lei é clara: "A utilização de animais para fins científicos ou educativos apenas deve ser considerada quando não existir uma alternativa não animal"

O Decreto-Lei n.º 113/2013 - uma transposição da Diretiva Europeia n.º 63/2010/CE - tem como principal objetivo "garantir que o número de animais utilizados para fins experimentais ou outros fins científicos seja reduzido ao mínimo", que "esses animais sejam adequadamente tratados e que não lhes sejam infligidos dor, sofrimento, aflição ou dano duradouro desnecessários". Para tal, todas as entidades que utilizem animais para fins científicos, no que toca à escolha dos métodos que deverão ser aplicados, devem reger-se "pelos princípios da substituição, da redução e do refinamento, genericamente designados '3Rs' [Replacement, Reduction, Refinement]", "conferindo preferência à utilização de métodos alternativos".

A autoridade responsável pela fiscalização dos estabelecimentos e pela garantia de aplicação das melhores práticas é a Direcção-Geral de Alimentação e Veterinária (DGAV). Neste diploma é ainda estabelecido que "todos os estabelecimentos públicos e privados onde são criados ou utilizados animais para fins científicos ou educacionais deverão ter um Órgão Responsável pelo Bem-Estar dos Animais (ORBEA)". Estas entidades devem assim "aconselhar, acompanhar e avaliar projetos que envolvam o uso de animais, e promover os '3Rs' da experimentação animal".

Em 2018, foi criada a Comissão Nacional para a Proteção de Animais utilizados para Fins Científicos (CPAFC) "que fornece aconselhamento de modo independente e imparcial à DGAV e ORBEA" e, no mesmo ano, foi celebrado um Acordo de Transparência sobre a utilização de animais de laboratório para fins científicos pelas principais universidades e laboratórios nacionais.  

Importa também referir que, desde 2013, não é permitida a realização de testes em animais de novos ingredientes para cosméticos e que a utilização de macacos em experiências também está proibida em Portugal. 

E os números de animais utilizados para fins científicos diminuíram?

Os dados mais recentes divulgados pela Direção-Geral de Alimentação e Veterinária (DGAV) revelam que foram utilizados em Portugal 79.447 animais para fins científicos, em 2019. A maioria dos animais testados, cerca de 76%, foram roedores - ratos e murganhos (também conhecidos como ratinhos) -, sobretudo, na investigação de doenças infeciosas, oncológicas e perturbações do sistema nervoso e psiquiátricas. Contudo, também foram utilizados coelhos, porcos, cabras, anfíbios e peixes.  

Em comparação com 2018, ano em que se chegou aos 81.107 animais, em 2019 regista-se uma ligeira descida no número de animais utilizados em nome da ciência. Mas, quando se olha para lá de 2018, a tendência é a contrária, é de aumento: em 2017 o número de animais usados para fins científicos foi de 52.983, em 2016 de 31.712, em 2015 de 20.623 e em 2014 de 25.606. 

Ainda no que diz respeito a balanços sobre o nosso país, segundo o último relatório da Comissão Europeia - o mais "transparente de sempre" - publicado em fevereiro de 2020, os laboratórios portugueses realizaram 0,4% das experiências em animais que ocorrem em toda a UE, em 2017. 

"Continuam a experimentar em animais e pronto". Petição a caminho do Parlamento

Em declarações ao Notícias ao Minuto, Rita Silva, presidente da Associação Animal e membro da direção da Cruelty Free Europe, começou por apontar que os mais recentes dados publicados pela UE são inexpressivos porque "não faz sentido" comparar Portugal com grande parte dos Estados-membros: "Como é que podemos comparar os números de França com os de Portugal, por exemplo? A geografia dos países e o número de laboratórios é completamente diferente".

A verdade é que o número de experiências em animais no nosso país aumentou

Para Rita Silva, Portugal está longe de poder ser um exemplo na proteção dos animais para fins científicos. A ativista, que trabalha há mais de 17 anos a defender a causa animal, sublinhou que a legislação portuguesa se traduz "nos mínimos" impostos pela UE.

"A diretiva europeia estabelece o mínimo que cada estado-membro deve implementar, não se devia fazer um 'copy paste' daquilo que é estabelecido de forma comunitária e ponto final. Podemos e devemos melhorar aquilo que é estabelecido. No caso português, de facto não houve qualquer alteração, realizou-se apenas uma tradução direta da diretiva. Depois, os laboratórios escudam-se e parece que se gabam sobre o princípio dos '3Rs'. Mas, isso é obrigatório. Não é um favor que os laboratórios estão a fazer", atirou a responsável. 

Mais, segundo Rita Silva, em Portugal, "ninguém quer saber ou vai à procura se há novos métodos validados ou não": 

"Continuam a experimentar em animais e pronto. Há uma falta de vontade de mudar, de fazer diferente e melhor", enfatizou, recordando que, hoje em dia, existem métodos não-animais validados "muito fidedignos" que não requerem um maior investimento como por exemplo: "as culturas de células, tecidos ou órgãos in vitro ou modelos informáticos e matemáticos que reproduzem exatamente igual o organismo humano e de animais através de simuladores". 

Sobre as entidades que promovem a aplicação do princípio dos '3Rs', a presidente da associação avaliou: "No que é que isso resultou? Não vimos nenhum avanço. São muitas criações de organismos com nomes muito pomposos que parece que estão a ajudar muito, mas, na prática, não [estão]"

"É por isso que lançamos [este sábado, 24 de abril, Dia Mundial do Animal de Laboratório] uma petição, dirigida ao presidente da Assembleia da República para que seja criado um centro de métodos não-animais em Portugal. Uma espécie de um Centro Europeu para a validação de métodos não-animais mas a nível nacional", anunciou, acrescentando que a associação Animal irá iniciar agora o diálogo com os partidos com assento parlamentar, ainda que a pandemia "dificulte o trabalho de lobbying".

Ainda assim, a maior crítica de Rita Silva é dirigida à DGAV. Segundo a ativista, no organismo que está sob a alçada do Ministério da Agricultura "há um conflito de interesses gravíssimo", relativamente à experimentação em animais, porque a DGAV é a entidade em Portugal a que compete receber os projetos de métodos não-animais, de os aprovar e de os inspecionar.

Deveria haver um organismo independente que fosse inspecionar e outro organismo que fosse quem apreciaria os projetos. Mas, não, é tudo com eles. Há falta de transparência, é tudo uma confusão, as inspeções parecem feitas quando calha e não há avanços na implementação de novos projetos. A DGAV é a instituição do Estado mais incompetente. É uma coisa que não tem explicação

54 estabelecimentos e 22 fiscalizações em 3 anos

Questionada pelo Notícias ao Minuto, a DGAV esclareceu que, no que diz respeito às fiscalizações, "os cerca de 54 laboratórios ou estabelecimentos autorizados" para criar ou utilizar animais para fins científicos ou educacionais em Portugal são alvo de "fiscalizações frequentes". 

"Nos últimos três anos, foram realizadas 22 ações de controlo (...), as quais se prendiam, na sua maioria, com falhas estruturais, e procedeu-se à notificação para a correção das irregularidades. As ações de melhoria adotadas, por parte dos estabelecimentos, foram acompanhadas pela DGAV", revelou a diretora-geral da Alimentação e Veterinária, Susana Guedes Pombo.

A responsável garantiu ainda que, em qualquer caso de não conformidade com o âmbito da legislação em vigor, "são adotadas medidas em função da gravidade, sendo os estabelecimentos notificados para procederem às correções necessárias ou, nas situações graves, levantados autos de notícia e instruídos os respetivos processos de contraordenação". 

Ainda quanto às ações de fiscalização em Portugal, o investigador Nuno Henrique Franco, coordenador da Rede Nacional de ORBEA e vice-presidente da Sociedade Portuguesa de Ciências de Animais de Laboratório, explicou ao Notícias ao Minuto que, após uma atualização legislativa em 2019, ficou determinado que "pelo menos um terço dos estabelecimentos onde animais são usados para fins científicos ou educacionais têm de ser inspecionados anualmente".

"Ou seja, daqui se poderá depreender que cada estabelecimento irá ser fiscalizado a cada três anos, no mínimo. Poderá parecer muito espaçado, mas é preciso ter em consideração que a DGAV dispõe de muito poucos recursos para a missão que lhe é exigida", apontou, acrescentando que, "felizmente", há mecanismos autorregulatórios de acompanhamento local de projetos, nomeadamente, pelos ORBEA, cuja confiança depositada "é merecida".

Contudo, de acordo com o investigador do i3S, Instituto de Investigação e Inovação em Saúde, no Porto, a falta de financiamento na DGAV limita não só a sua capacidade fiscalização, mas toda a sua ação. 

"É comum entre investigadores queixarmo-nos dos constantes atrasos nas respostas da DGAV, mas também sabemos que tal não é culpa dos profissionais que lá trabalham, mas da falta de meios que permitam uma resposta mais célere e um acompanhamento mais próximo do que se passa nos estabelecimentos. Não basta legislar, é também necessário que as autoridades competentes disponham das pessoas e recursos para garantir o cumprimento da lei", vincou. 

Ainda assim, o também presidente-eleito da Education & Training Platform for Laboratory Animal Science garantiu que a transparência no âmbito da experimentação animal em Portugal nunca foi posta em causa e que, nos últimos anos, contaram-se vários avanços. 

"A 15 de março a Associação Europeia de Investigação Animal (EARA) promoveu junto dos signatários do Acordo de Transparência uma reunião para discutir o progresso alcançado. O relatório deverá ser publicado em breve, mas posso já adiantar que se progrediu bastante, faltando melhorar alguns pontos de forma a tornar ainda mais visível o uso de animais em ciência e os cuidados que lhes prestamos". 

"O mais importante é garantir o cumprimento pleno da atual legislação"

Considerando que os padrões de exigência exigidos como mínimo pela UE "são elevadíssimos", quanto aos próximos passos, Nuno Henrique Franco defendeu que "o mais importante é garantir o cumprimento pleno da atual legislação, em todo o país e a harmonização de princípios e práticas, ao nível europeu"

Tendo em conta que, em 2018, a Comissão Europeia instaurou um processo a Portugal por incumprimento e deficiência de alguns artigos na transposição da diretiva, o responsável adiantou que, em breve, deverá ser realizada mais uma atualização à lei portuguesa. "Mas, não se espera mais do que algumas revisões de pormenor", adiantou. 

Não obstante, segundo o investigador, há passos importantes a serem dados no país, além do enquadramento legal do uso de animais para fins científicos: 

"Apesar do enorme progresso que fizemos, há ainda trabalho a fazer. Se dependesse de mim, começaria por dar um novo fôlego à CPAFC, que atualmente se encontra parada e cujo nível de atividade e influência nunca se aproximou da das suas congéneres europeias", exemplificou. 

Experimentação animal no Parlamento 

O Bloco de Esquerda (BE), o PCP e o PAN foram os últimos partidos a levar novamente à Assembleia da República preocupações relacionadas com o uso de animais em nome da ciência. Na altura, em fevereiro de 2020, todas as iniciativas foram chumbadas em plenário. 

O BE apresentou um projeto de resolução no qual recomendava o Governo a proceder a uma "revisão da composição da CPAFC" e que diligenciasse a comissão a implementar "medidas de transparência relativamente à sua atividade". 

"Aquilo que nos preocupa mais nesta questão é regular o funcionamento da comissão. Tanto quanto sabemos e daquilo que tem sido público, [a sua ação] não é assim tão regular. Por exemplo, não há registo de atas de reuniões, pareceres ou de comunicações com  Rede Nacional de ORBEA. Não é transparente. O projeto de resolução pedia no início de 2020 parece-nos atual, ainda agora, passado um ano", sublinhou a deputada bloquista Maria Manuel Rola, em declarações ao Notícias ao Minuto.

A parlamentar afirmou ainda que se "esta situação continuar a ocorrer", o BE irá insistir com o projeto de resolução, acreditando que o bom funcionamento desta entidade "é um dos primeiros passos a fazer para se iniciar a redução da utilização de animais para fins científicos".

O PCP também deixou uma recomendação ao Executivo socialista para que promovesse o "investimento para o desenvolvimento de alternativas ao uso de animais para fins experimentais".

A ideia, explicou ao Notícias ao Minuto a deputada comunista Alma Rivera, era que fossem canalizadas "verbas para um  programa  de  investigação vocacionado  para  alternativas ao uso  de  animais  em investigação científica" e que, relativamente aos ORBEA, fosse realizada a "divulgação semestral de um relatório sobre o grau de instalação" de métodos não-animais, bem como, "a planificação da criação destes onde não existam", numa parceria com a CPAFC e a DGAV. 

Ainda que o projeto de resolução tenha 'caído por terra', a parlamentar asseverou que o PCP continua a trabalhar para que se caminhe para a redução da utilização de animais em investigação científica e que está "atento e a acompanhar a aplicação dos diplomas aprovados". 

Ainda existe um percurso que será necessário trilhar para reduzir a utilização de animais em investigação científica, particularmente no desenvolvimento de alternativas, mas esse caminho é tão mais curto quanto maior for o financiamento da ciência e da investigação e as condições dadas aos próprios investigadores

Já o PAN, no ano passado, apresentou recomendações e um projeto-lei a fim de colmatar o incumprimento, em Portugal, no que diz respeito "à fiscalização, à redução do número de animais e à redução dos elevados níveis de dor a que estes estão sujeitos" nos laboratórios. 

Ao Notícias ao Minuto a deputada Bebiana Cunha garantiu que o partido permanece com as mesmas objeções e que "muito em breve" a bancada parlamentar do PAN irá dar entrada de um leque de iniciativas para "levar o Parlamento a debater estas temáticas, com o objetivo de instar o Governo para que se faça um caminho mais ético naquilo que é o uso de animais para fins científicos". 

Bebiana Cunha alertou, em particular, para o facto de, segundo os dados de 2019 da DGAV, mais de 11 mil animais terem sido utilizados em procedimentos severos em investigações. "Quando falamos em procedimentos severos estamos a falar de, por exemplo, deslocamentos cervicais, que inflige uma dor imensurável ao animal. Estamos em contraciclo com o caminho que deve ser feito", reiterou. 

A deputada apontou ainda que é essencial que sejam garantidos os meios para apoiar a investigação com modelos não-animais no ensino superior e para que haja mais ações de fiscalização nos estabelecimentos que testam em animais, considerando que chegam ao PAN denúncias preocupantes: "Sabemos que em Portugal a fiscalização não é totalmente inexistente mas que para lá caminha. Há projetos que nunca foram alvo de uma ação de fiscalização por parte da DGAV e há relatórios que evidenciam que há animais que foram utilizados por falta desta fiscalização"

"Portugal está a fazer o caminho contrário. Nos últimos cinco anos, quadruplicámos o número de animais utilizados. Temos um caminho enorme a fazer nesta matéria e estamos muito atrasados. Por isso, é indispensável acelerarmos o passo", vincou. 

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